03/07/2020 - Thais Paiva

César Nunes: “A escola tradicionalista foi aniquilada com a pandemia”

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César Nunes, professor titular da Faculdade de Educação da Unicamp, fala sobre os impactos da pandemia na sociedade e, mais especificamente, na educação.

A sociedade já não é a mesma e isto implica que teremos mudanças profundas nas relações educacionais. Quem diz é o professor César Nunes, da Faculdade de Educação da Unicamp. Em entrevista ao Movimento de Inovação na Educação, o professor especializado na área de Filosofia da Educação falou sobre os impactos da pandemia por Covid-19 na nossa cultura e, mais especificamente, nas nossas escolas.

Para ele, a crise causada pelo novo coronavírus coloca em xeque dois modelos de escola que se contrapõem no cenário brasileiro e precisam mudar: a escola assistencialista e a escola meritocrática, pensada para treinar para o vestibular. Na conversa abaixo, o docente indica: “A escola que deve nascer destas cinzas tem que ser crítica, sustentável, um lugar de formação humana plena.”

Movimento de Inovação na Educação: O contexto da pandemia por Covid-19 gerou uma crise não somente sanitária, mas também em diversos aspectos da vida social, entre eles a educação. Quais são os novos paradigmas educacionais que esta crise nos convoca a pensar?

César Nunes: Vejo que esta crise é o ponto alto de um conjunto de transformações que a sociedade vem passando há mais de cinco décadas. O historiador Hobsbawm [1917-2012] chamou o século passado de “o breve século XX” porque ele não conseguia dizer que ele acabava, porque não é uma data plena, é um acontecimento que envolve a vida de todas as pessoas. Eu, pessoalmente, acho que o século XXI começa agora. Porque quando se muda radicalmente as formas de viver, de trabalhar, de se movimentar, de distribuir riquezas é que o mundo muda. E essa pandemia obrigará uma revisão civilizatória em todos os aspectos como cultura, organização urbana, consumo. As cidades asfixiantes, a emissão de gases, o consumo desenfreado foram colocados em xeque por esse vírus. Vamos ter que alterar profundamente nossa visão de mundo e de sociedade. Já não se produzirá da forma como se produzia. Estamos vendo o Estados Unidos dependendo de produtos primários da China como respiradores e máscaras. Vendo cidades europeias, que são símbolo da beleza e saneamento, não terem uma rede pública de atendimento preparada. A economia não poderá mais proclamar que é o mercado que organiza tudo. A pandemia do coronavírus recolocou o Estado no papel de regulador das forças econômicas. professor

Professor César Nunes, da Unicamp

Diante de tudo isso, teremos também uma mudança profunda nas relações educacionais: a escola vai ter que incorporar novas formas de conviver e de produzir conhecimento. Deveremos ter uma escola com a relação humana mais consolidada, mas teremos também que nos apropriar de forma mais urgente das tecnologias digitais, da transmissão de dados. E aí não é somente uma posse de tecnologia, é uma decisão política. A escola tradicionalista foi praticamente aniquilada com a pandemia. A escola que deve nascer destas cinzas tem que ser crítica, sustentável, ambientalmente correta, permeada por relações humanas adequadas, professores esclarecidos, gestores motivados, um lugar de formação humana plena.

MIE: E como este modelo antiquado de escola se relaciona com a crise que estamos vivendo?

César Nunes: O Brasil tem sido colonizado por uma visão de mundo, desde os anos 90, que a melhor escola é aquela pautada pela avaliação (por Ideb, Pisa, Prova Brasil), centrada em português e matemática, por exercícios de memorização. Se você pegar o currículo do quinto ano do Ensino Fundamental você leva um susto com a quantidade de coisas que estão ali e que já não estão mais conectadas com a realidade. E há um preconceito em relação à escola pública. A verdade é que os vestibulares das principais universidades públicas continuam muito rígidos e com pouquíssimas vagas. Estas universidades não estão abertas a todos, ainda é uma reserva muito triste de classe. Então nós achamos que a escola boa é a particular, carregada de treinamento da memória para passar no vestibular. E não é! A pandemia mostrou que as duas escolas que se contrapõem no cenário brasileiro precisam mudar: a escola pública, predominantemente colonizada por mecanismos compensatórios de assistência social e a escola privada, meritocrática e classificatória, pensada para passar no vestibular.

Precisaremos de uma terceira margem do rio: uma escola unitária, culturalista, que não seja treinamento da memória. E aí nós precisamos não somente questionar o conteudismo, porque isso fica muitas vezes em um lugar comum. Precisamos criticar o conteudismo da visão tradicional, porque ter conteúdos, exercitar a curiosidade, é correto. Mas colocar um apanhado de conteúdos rígidos, passados de forma única, professoral, no dia a dia da sala de aula, e depois de meses cobrar que o aluno consiga lembrar e escrever num papel que não é. Então não é o conteúdo que está sendo criticado, mas a relação pedagógica: autoritária, bancária e unilateral. 

MIE: Sobre a tecnologia, neste momento de isolamento social vemos ela ocupando um espaço muito importante. O senhor já comentou como a escola contemporânea precisa incorporar esses dispositivos. Mas como fazer este processo de forma adequada? Quais os cuidados que precisamos tomar?

César Nunes: Os recursos digitais, a transmissão remota de dados, a possibilidade de pesquisa, isso tudo é uma conquista das sociedades contemporâneas. Estes bens simbólicos são muito recentes e ocupam grande parte de nossa vida cotidiana. Atrás destas tecnologias vem, claro, uma dependência econômica. Não é uma dádiva do capital, a tecnologia tem também uma finalidade consumista e de controle. É possível saber onde você está a partir do seu celular. Mas nós precisamos entender que o mal não está na tecnologia: está na apropriação política e no seu uso objetual. Se a gente tiver um investimento econômico profundo para aparelhar as escolas com laboratórios, com redes wi-fi, com um serviço público de provedoria de dados, preparação dos professores nas faculdades de Pedagogia para o manejo didático, é positivo. Então não se trata de condenar as tecnologias, mas de encontrar uma pauta pedagógica para que as crianças se apropriem de forma sensorial, intelectual, afetiva, ética e moral.

Tem muita gente que têm uma visão “congelada” sobre as tecnologias, uma visão negativa. Eu não tenho. Acho que tem uma identidade da tecnologia que vem do desenvolvimento industrial e mercantil hoje, mas há um potencial didático. É preciso criar uma apropriação pedagógica ética e política das tecnologias digitais e isso passa por um paradigma de políticas públicas. Não adianta ser a favor e não ter wi-fi nas escolas, não ter professores que sabem usar. Temos que ter uma alfabetização digital primeiro. Mas nós estamos ainda semi-alfabetizados digitalmente. Mas antes de ser contra ou favor é preciso ter clareza e pensar o que as tecnologias digitais vão representar no prognóstico que queremos: ampliação de fontes, capacidade de criatividade, riqueza de dados, etc. A pandemia nos dá a oportunidade de pensar uma nova escola que não seja colonizada pelos grandes lobistas que querem fazer vender aparelhagem de computadores para as escolas. Isso não adianta. É preciso que isto esteja dentro de uma política pública que veja outros elementos.

MIE: Por fim, o que as escolas inovadoras ensinam para as demais sobre como preparar as novas gerações com as competências para lidar com períodos tão incertos como este que estamos vivenciando?

César Nunes: A escola trabalha duas grandes coordenadas humanas: a formação humana como um todo e também a transmissão, reprodução formal dos conhecimentos, dos consensos sociais que a humanidade foi acumulando historicamente e que devem ser repassados a cada nova geração. Então, neste sentido, a geração que entra na escola precisa antes ser acolhida, precisa da escola formação humana, e depois da escola produção/reprodução dos conhecimentos e condutas socialmente produzidos. A educação inovadora trabalha com essa perspectiva: coloca o conhecimento a serviço da felicidade e da justiça, faz da escola, primeiro, uma grande arena de experiência humanizadora. 

Curriculum é o particípio passado de um verbo latino, que significa correr ou andar. Então, currículo pode ser aquilo que a gente já andou – um olhar para o passado – ou poder ser aquilo que eu quero andar – um olhar para o futuro. Eu acho que o currículo tradicional da escola, que já andamos, é um currículo que precisa ser superado: avaliativista, meritocrático, bancário, classificatório, centrado na reprodução de padrões de comportamento e pensamento alinhados a uma visão unilateral hegemônica da cultura tradicional do Brasil. Agora, o percurso para frente, o horizonte, precisa ser o currículo que humaniza. As cidades têm que ser espaços educadores e as escolas espaços acolhedores. O primeiro espaço de experiência social de uma criança depois da família é a escola. Uma criança na Educação Infantil que se sentir amada e respeitada vai criar laços profundos com a escola, que depois vão se transformar em laços com a sociedade. E a educação inovadora é uma grande proposta de recuperar esse papel da escola para a formação humana.

Texto publicado originalmente no Movimento de Inovação na Educação

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