Entre 22 e 24/11, Fórum reuniu educadores de todas as partes do Brasil para debater qualidade na educação e seus possíveis indicadores. Veja os destaques do primeiro dia de evento
A manhã de 22 de novembro foi diferente para quatro escolas inovadoras da cidade de São Paulo. Além da movimentação rotineira do vai e vir dos alunos e educadores da instituição, a Emef Amorim Lima, no Butantã, a Emef Infante Dom Henrique – Espaço de Bitita, no Canindé, a Emei Gabriel Prestes, na Consolação e o Cieja Campo Limpo, no bairro homônimo, abriram suas portas para receber colegas de outras escolas e de Secretarias de Educação, vindos de diferentes estados do Brasil, todos comprometidos com uma mesma causa: a transformação da educação. Por essa fração de dia, eles puderam trocar entre si os desafios, os aprendizados e ver de perto como a inovação acontece em cada um daqueles espaços.
Assim começou o Fórum Nacional do Escolas2030, que ocorreu entre 21 e 24 de novembro, em São Paulo. E não poderia ter sido diferente. As visitas às escolas ilustraram perfeitamente o mote do programa: colocar quem faz educação para pensar as políticas e os indicadores de qualidade coletivamente.
Realizado pela Faculdade de Educação da USP e pela Ashoka Brasil, o Fórum foi a tão esperada oportunidade de compartilhar os aprendizados vividos nos últimos três anos acerca de processos de pesquisa-ação. Foi também ocasião de debater e refletir sobre a conjuntura e o futuro da educação no Brasil, sobretudo, aquele que começa a ser traçado a partir de 2023 com a posse do novo governo federal. Para tanto, o evento reuniu, na Casa de Cultura Japonesa (USP), professores e gestores das organizações educativas que compõem o programa, representantes de Secretarias de Educação, membros de organizações da sociedade civil e pesquisadores de diversos territórios do Brasil.
Na mesa de abertura, Carlota Boto, diretora da Faculdade de Educação da USP (FEUSP), falou do desafio de mudar o modelo escolar. “Há alguns autores que chegam a falar em ‘gramática da escola’ moderna, dizendo que as escolas mudam muito lentamente assim como é lenta a mudança das gramáticas das línguas. Há a necessidade de mantermos o modelo escolar, mas com as transformações que ele necessita vivenciar, democratizando as instâncias internas e trazendo as mudanças que possam reconstruir essa instituição que para todos nós é tão cara.”
Em seguida, Elie Ghanem, professor da FEUSP e coordenador da pesquisa-ação do programa no país, destacou a importância das construções feitas até agora e das premissas do programa. “Não se costuma valorizar esse saber acumulado na experiência direta da prática educacional. Essa é a nossa pretensão. Não só valorizar aquilo que já se desenvolveu, mas aperfeiçoar esse conhecimento e extrair desse conjunto recomendações, sugestões, indicações que possam ter maior alcance, que possam servir para outros locais e países”.
Helena Singer, coordenadora geral do programa no Brasil, também participou da mesa de abertura e acrescentou sobre o programa Escolas2030: “É uma oportunidade de estruturar em grupos de trabalho educadores inovadores que podem fazer a transformação. Esperamos que possamos continuar esse processo até 2030.”
Inovação é aprendizagem contextualizada
O primeiro painel do Fórum versou sobre a publicação Como organizações educativas inovam: ideias e visões sobre as suas próprias práticas, e convidou os painelistas para falar sobre como o exercício de elaboração dos Marcos Zeros de suas escolas contribuiu para a prática escolar.
Os Marcos Zeros foram instrumentos investigativos feitos por 29 organizações educativas escolares e não escolares por meio dos quais refletiram sobre sua prática em aspectos como: 1) alteração de métodos de ensino; 2) orientação à realidade local e resposta a necessidades do contexto escolar; 3) rompimento com práticas tradicionais de ensino; 4) processo de atuação sociopolítica. O conjunto dessas percepções gerou a publicação, que capta o modo como lidam com o modelo da educação escolar convencional e vêm construindo práticas inovadoras.
Construir o Marco Zero exigiu um grande esforço coletivo da equipe da EM Professor Paulo Freire, em Belo Horizonte (MG). “Fizemos a revisão do Projeto Político Pedagógico (PPP) da escola e dedicamos horas e horas de reunião. Nesses encontros, percebemos o tanto de inovações que fazemos. No dia a dia, muitas vezes, ficamos sufocados com obrigações burocráticas e essas reuniões possibilitaram essa reflexão e que colocássemos isso no papel”, conta a professora Cristiane Paula da Silva.
Diretora da escola, Adriana Viana de Souza acrescentou sobre o processo: “A nossa escola é fruto do desejo de uma comunidade, do orçamento participativo. Temos rodas de conversa com os alunos onde eles colocam as demandas deles porque o elemento humano precisa ser acolhido. O Marco Zero conta a trajetória de uma escola que tem o nome de um educador que fala sobre a ‘delicadeza de educar’ e isso não pode ficar de fora. A comunidade precisa muito mais do que um IDEB, ela precisa ser acolhida.”
Para Adriana Rebouças, professora da Escola Pluricultural Odé Kayodê, em Goiás (GO), o processo de elaboração do Marco Zero trouxe uma reflexão importante sobre a diversidade da escola. “A gente se baseia na inovação ancestral que é a roda, de construir por meio da horizontalidade. A gente fala de inovação como o encontro entre as diferentes idades, da pedagogia da festa. A festa é processo, é encontro, é quando a gente pode olhar para nós mesmos. Construir o Marco Zero foi importantíssimo porque a gente que faz tem dificuldade de registrar. E o programa Escolas2030 tem nos impulsionado para esse desafio. Nós, inclusive, transformamos nosso Marco Zero em uma espécie de e-book”, contou.
A importância da ancestralidade também guiou a fala do professor Juvêncio Cardoso (cujo nome baniwa é Dzoodzo), da Escola Baniwa Eeno Hiepole, em São Gabriel da Cachoeira (AM). O educador indígena contou como sua escola precisou passar por uma profunda transformação para encontrar uma matriz pedagógica articulada aos interesses e saberes do povo da floresta. “Hoje, os alunos se sentem pertencentes a essa construção coletiva e a gente cria esse diálogo entre experiência local e política pública. Construir no território é viver de forma significativa”, disse.
Tereza Perez, diretora da Comunidade Educativa Cedac, alinhou-se a essa mesma ideia. “As diretrizes para a educação étnico-raciais, por exemplo, são muito boas, mas como a gente incorpora aquilo, de fato? É um caminho de duas direções. Com essas práticas, a gente impulsiona e oferece musculatura para políticas públicas e, por sua vez, estas políticas precisam fazer sentido para quem se apropria delas nos territórios”, disse.
A diversidade presente no relatório “Como organizações educativas inovam” foi ressaltada por Iuri Rubim, do Instituto Anísio Teixeira. “A gente fala muito de inovação no singular e o relatório esmiuça a lógica das diversas inovações e que se aplicam em diferentes contextos”. O especialista também reiterou a importância de olhar para a aprendizagem a partir de uma lupa mais ampla. “A gente tem impregnado que a educação acontece dentro da sala de aula, mas a experiência dos estudantes vai muito além, é a vida deles. Então é importante olhar o caminho da prática para a teoria, pois quando o conhecimento está a serviço de encontrar soluções, ele ganha muito mais sentido, mobiliza, apaixona, ele está próximo das pessoas”.
Vinnicius Nazaré, Jovem Transformador Ashoka, endossou esse entendimento. Tendo realizado o ensino médio no NAVE Recife – Escola Técnica Estadual Cícero Dias, ele acredita que a metodologia inovadora da escola, baseada na aprendizagem por projetos, impactou sua trajetória. “Há um tempo ninguém poderia imaginar que estaríamos usando jogos para transformar as realidades. Mas no NAVE mostravam que era possível partir dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) para mudar um contexto real”.
Essa lógica continua presente em sua vida. O jovem é fundador de uma empresa chamada Cordel, que desenvolve ambientes de aprendizagem com sentido para as juventudes. “O objetivo é, por meio dessas ferramentas, trazer disparos, novas conversas, colocando a tecnologia como meio inclusivo e alternativo para os professores”, contou.
Avaliação e educação inovadora
O segundo painel do dia tratou do Levantamento sobre avaliação em organizações educativas, sobre como comunidades, redes e organizações educativas (escolares e não escolares) são impactadas, compreendem e produzem avaliações.
O levantamento diferencia dois tipos de avaliação – as externas e as internas (avaliações próprias das organizações educativas) – e indica o predomínio de uma opinião positiva na comunidade Escolas2030 sobre ambos os tipos de avaliação. Um fato que surpreende. “Para nós, era de se esperar uma menor sintonia com avaliações externas, que são frequentemente questionadas no ambiente científico, sindical, do magistério e de gestores governamentais. Mas a maior proporção das respostas crê que as avaliações externas levam a identificar contribuições ou aprendizados trazidos pela prática educacional da escola ou por políticas educacionais que incidam na escola ou organização. E a maior proporção também discorda que as avaliações externas levam a reduzir o currículo aos conteúdos verificados nas provas ou a reduzir suas práticas pedagógicas, priorizando-se o preparo para realizar provas”, compartilhou Elie Ghanem.
Sandra Unbehaum, pesquisadora da Fundação Carlos Chagas, analisou estas percepções. “Não me surpreende que o relatório expresse um reconhecimento da avaliação educacional. As avaliações externas dizem sempre muito pouco sobre os processos de ensino e aprendizagem e sobre as peculiaridades locais, mas todos nós entendemos que as avaliações externas são importantes para mostrar um cenário nacional”, colocou.
Para a pesquisadora, ainda que haja críticas ou que parte desses resultados não exprimam toda a realidade dos locais, as pesquisas de larga escala são importantes na medida em que informam políticas públicas – ou pelo menos deveriam. “Por exemplo, sabemos que os racismo atinge, sobretudo, os meninos negros. Sabemos disso porque temos índices, mas não levamos isso em consideração quando pensamos em política de avaliação”, apontou.
Representando a perspectiva estudantil, Tobias Gehrts, estudante do Instituto Federal de Educação de São Paulo, comentou sobre sua experiência com avaliações externas. Para o estudante, quando se fala no tema, a cobrança por performance é uma constante. “As atividades que não estão no currículo, como eventos esportivos, do grêmio, etc., que têm também a proposta de fazer uma educação de qualidade, não são levadas em consideração. Como a gente integra as atividades que os alunos propõem? Acho que temos que balancear avaliações com todos os aspectos da vida do estudante que não se resumem a notas”, colocou.
Ainda sobre o tema, Jucie Parreira, secretário de Educação e Cultura de Almirante Tamandaré (PR), comentou sobre os impactos das avaliações externas na rede de ensino e como interpretá-las. “Nós temos um sistema de avaliação no estado do Paraná que premia os gestores que conseguem bons resultados. E tivemos várias orientações em reuniões com a secretaria e com o núcleo regional de educação que no dia da prova você deixa os educandos de inclusão em casa, por exemplo. Que avaliação é essa que a gente não considera todo mundo? Mais do que isso: tem uma orientação para o educando que não está na unidade ser excluído do sistema de matrícula para que o indicador aumente. Não à toa é o melhor IDEB do Brasil, porque foram apagados do sistema de matrícula milhares de meninos e meninas que só pelo sistema da escola tínhamos como encontrá-los e que agora a gente não acha mais”, contou.
O primeiro dia do encontro se encerrou com o coquetel de lançamento da publicação Recomendações para as Políticas Pública, elaborada a partir da experiência acumulada de organizações educativas participantes do programa Escolas2030 no Brasil, e a entrega do Livro das Lives, publicado pela Fundação Santillana, que compila diálogos em torno dos desafios da educação que emergiram durante a pandemia de covid-19.