Evento ocorreu no dia 27/10 e reuniu organizações educativas do programa que promovem práticas voltadas para as relações étnico-raciais
O racismo no Brasil é estrutural, o que significa que suas manifestações atravessam todas as relações e espaços que compõem a sociedade, inclusive, a escola. Neste sentido, por princípio, a educação integral e transformadora deve ser antirracista. Mas de que forma as escolas inovadoras brasileiras estão construindo uma educação para as relações étnico-raciais no dia a dia da Educação Básica?
Estas foram algumas provocações que conduziram o seminário “A Educação Integral e Transformadora é Antirracista”, promovido pelo Escolas2030, no dia 27/10, na Faculdade de Educação da USP, em São Paulo (SP).
Com mais de 100 participantes, o encontro reuniu representantes de organizações educativas, Secretarias de Educação e pesquisadores de diferentes territórios do Brasil para investigar práticas antirracistas da comunidade Escolas2030 e fazer propostas para os diferentes agentes envolvidos na Educação Básica. Também contou com a cobertura feita por estudantes que integram a Imprensa Jovem oriundos das escolas EMEF Feitiço da Vila e EMEF Rodrigues Alves, ambas da rede municipal de São Paulo.
O seminário também dialogou com o XVIII Seminário Étnico Racial do CIEJA Campo Limpo, realizado no dia 26/10, que alcançou 843 participantes, entre eles, 27 lideranças comunitárias e 44 escolas representadas. Dedicado à cultura e resistência negra, o evento acontece desde 2004 e contou com a presença de organizações educativas do programa na mesa “Conhecendo Escolas Transformadoras: Projeto Escolas2030”. Este ano, sob a temática “20 anos da Lei 10.639/03 – Saúde e bem-estar da população negra”, ocorreram diversas atividades, oficinas e palestras .
Painel de abertura
A abertura do evento do dia 27/10 foi realizada por Elie Ghanem, professor da Faculdade de Educação da USP e coordenador de pesquisa-ação do Escolas2030, que frisou a importância do debate e da contribuição do coletivo do programa para a temática: “Das organizações educativas que participam do programa Escolas2030 no Brasil, várias têm uma dedicação expressa, direta, constante e cumulativa de atuação antirracista. Mas para além dessa opção política e moral, desta concepção de educação, temos que cumprir a constituição do Brasil, que diz em seu preâmbulo:”
“Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembleia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias.”
“São palavras que nos orientam e nos desafiam para que encontremos os melhores caminhos para realizá-las. Elas apontam para uma educação integral, transformadora e atirracista”, acrescentou Elie.
A palavra teve sequência com Rosa Margarida Carvalho, coordenadora do Grupo de Estudos Afropedagógicos SANKOFA e membro do Comitê Consultivo do Escolas2030, que lembrou que, desde 2003, a Lei 10.639/03 preconiza o ensino da história e cultura afro-brasileira e africana nas redes públicas e particulares de todo o País. Por esta razão, Rosa reiterou que “é preciso que o eixo antirracista esteja protocolado no Projeto Político Pedagógico (PPP) da escola, do regimento escolar. A questão antirracista não pode ser uma questão da pessoa que está no momento da gestão, mas tem que ser uma questão de todas as instâncias.”
Ela falou ainda sobre como o racismo estrutural da sociedade brasileira é reproduzido institucionalmente e com muita ênfase nas escolas e que, por isso, “não podemos mais improvisar, é necessário e urgente planejar estratégias efetivas para a consolidação da Lei 10.639 e 11.645 dentro das escolas.”
Mostra de experiências
Com o intuito de demonstrar como estas diretrizes acontecem na prática, ainda pela manhã, aconteceu a “Mostra de Experiências”, que colocou as organizações educativas do programa para refletir e debater em grupos, a partir das suas realidades, como vêm desenvolvendo um trabalho na perspsectiva antirracista. Para tanto, foram constituídas três mesas simultâneas com integrantes diversos.
Mediado por Rosa Margarida, o primeiro grupo foi composto por CIEJA Campo Limpo (São Paulo/ SP), Escola Pluricultural Odé Kayodê (Goiás/GO), Escola Comunitária Luiza Mahin (Salvador/ BA) e Escola Municipal Anne Frank (Belo Horizonte/ MG).
O segundo grupo, sob mediação de Dayse Oliveira, analista de Projetos Pedagógicos da Associação Nova Escola, reuniu as paulistas EMEF Luiz Gonzaga do Nascimento Jr. (São Paulo/ SP), EMEF Campos Salles (São Paulo/ SP), Escola Municipal Antônio Coelho Ramalho (Ibiúna/ SP) e Escola Municipal de Educação Infantil Gabriel Prestes (São Paulo/ SP).
Por fim, a terceira mesa, sob mediação de Douglas Ladislau, articulador da pesquisa-ação do programa, colocou em diálogo o Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo Campus São Roque (São Roque/ SP), a Escola Baniwa Eeno Hiepole (Terra Indígena Alto Rio Negro, São Gabriel da Cachoeira/ AM), a EMEF Desembargador Amorim Lima (São Paulo/ SP) e a Escola Municipal Quilombola Professora Lydia Sherman (Búzios/ RJ).
Experiências antirracistas em diálogo
Pensada a partir dos saberes das culturas indígenas e afro-brasileira, a Escola Pluricultural Odé Kayodê nasceu há mais de 30 anos, portanto, antes da obrigatoriedade do ensino da cultura e história afro-brasileira e indígena decorrente das Leis 10.639 e 11.645.
“O nome da nossa escola, Odé Kayodê, vem da língua iorubá, que traduzindo para o português significa ‘caçador que traz alegria’. E, em nossa escola, a gente tem muito esse objetivo de ensinar e aprender com alegria”, compartilhou Bento Rodrigues, de 10 anos, presidente mirim da escola, que esteve presente na mesa ao lado da vice-presidenta, Pérola Santos, de 10 anos, que acrescentou: “Na escola, a gente aprende com todo mundo e com a cultura africana e indígena.”
Para a coordenadora Adriana Rebouças, não há outro caminho para se fazer uma educação integral e transformadora senão rompendo com a colonialidade. “A gente precisa olhar para essa ferida histórica e precisamos abrir brechas nesse sistema opressor para nos transformar. É aquilo que Paulo Freire fala: ‘enquanto eu me educo, eu vou me educando’. E como fomos educados em um sistema extremamente racista, temos que fazer esse exercício constante de olhar para gente enquanto professoras e professores.”
Inspirada na história de luta que dá origem ao bairro belo-horizontino do Confisco, que começou com uma ocupação, sobretudo, de mulheres negras, a Escola Municipal Anne Frank estrutura seu Projeto Político Pedagógico em dois principais eixos: educação para as relações étnico-raciais e educação ambiental. Sobre o primeiro, a diretora Conceição Cardoso definiu: “Educação antirracista é educar para a diversidade, desconstruir formas de pensar e agir. O resultado do nosso trabalho é perceber as pessoas se sentindo pertencentes aos lugares, àquele grupo e reclamar os seus direitos”.
O Cieja Campo Limpo, que se dedica à educação de jovens e adultos na região do Capão Redondo, na capital paulista, falou sobre o desafio de receber estudantes que foram discriminados pelos processos de educação formal e, muitas vezes, também pela raça. “Não é só trabalhar a autoestima, mas ela é fundamental quando o estudante consegue olhar para a situação que ele vivenciou e perceber que o problema não foi ele, quando ele consegue nomear que foi uma situação de racismo”, exemplificou a professora Samara Annanias Teixeira da Costa.
O trabalho com as relações étnico-raciais acontece no dia a dia da escola, de forma transdisciplinar. No entanto, o Cieja possui também duas comissões específicas, formada por professores e gestão, voltadas para pensar sobre como o tema pode aparecer em sala de aula e na formação docente: uma direcionada às questões indígenas e outra, às culturas negras.
Batizada em homenagem à líder da Revolta dos Malês, levante de escravos que aconteceu na capital baiana no século XIX, a Escola Comunitária Luiza Mahin foi erguida a partir da mobilização de mulheres negras que moravam na Península de Itapagipe. A instituição trabalha com Educação Infantil e uma turma de 1º ano do Educação Fundamental a partir de uma metodologia alicerçada em três eixos: gênero, raça e pertencimento.
“Salvador é a cidade mais negra fora da África e a gente conta nos dedos as escolas na nossa cidade que se propõem a trabalhar a educação antirracista”, apontou Luciene Trindade, diretora da escola. “Agora, em novembro, começam as ações voltadas para as questões raciais na maioria das escolas de lá. E isso dói porque a gente sabe que a questão racial tem que estar na escola o ano inteiro.”
Recomendações para escolas, governo e universidades
À tarde, o seminário teve um momento mais “mão na massa”. Os participantes foram divididos em três grupos de trabalho, cada qual voltado para um público específico – organizações educativas, governo e universidades –, com a função de propor recomendações que auxiliassem essas instituições a promover a educação integral e transformadora, de fato, antirracista.
A proposta é que as recomendações sejam sistematizadas pela equipe do Escolas2030 para, posteriormente, serem disseminadas para o grande público de forma a incidir propositivamente sobre diferentes atores e políticas públicas.
No encerramento do seminário, Rosa Margarida reiterou sobre a necessidade de transformar os debates em torno do racismo e seu enfrentamento no espaço escolar em um plano de ação, com objetivos, estratégias e metas concretas. “O primeiro passo é fazer um diagnóstico: como estão as relações étnico-raciais na minha escola? Ela é antirracista ou não? Quais critérios eu uso para avaliar isso? O que é que eu tenho feito e não feito? A partir desse diagnóstico, eu vou então problematizar”, explicou.
O segundo passo, disse a especialista, é transformar tudo que foi planejado em questões que estarão na escola de forma perene. Para isso, enumerou cinco princípios fundamentais: comprometimento da gestão, formação continuada e em serviço, relação com a comunidade, trabalho articulado e coletivo e revisão do currículo e das práticas pedagógicas. “Tenho que pensar todas essas dimensões para criar um clima escolar antirracista”, finalizou.